The Unaborted Socrates 1#3

Peter John Kreeft (Paterson, Nova Jérsei, EUA, 16 de março de 1937) é um professor de Filosofia no Boston College e King's College. Autor de vários livros de Filosofia cristã, teologia católica e apologética católica. Suas principais influências foram Sócrates, Santo Tomás de Aquino, G. K. Chesterton, C. S. Lewis e Blaise Pascal.

É oriundo de uma família calvinista, mas converteu-se ao catolicismo romano e hoje é considerado um dos maiores escritores católicos dos Estados Unidos. Kreeft graduou-se no Calvin College (1959), concluiu o mestrado (1961) e doutorado (1965) na Fordham University.

The Unaborted Socrates - O "inabortado" Sócrates

https://archive.org/details/unabortedsocrate00kree

Um debate dramático sobre as questões que cercam o aborto. Esse diálogo imaginário entre um defensor do aborto chamado Herrod (ou Herodes) e o filósofo Sócrates, é uma livre tradução da obra do Dr. Peter J. Kreeft. Quem já leu apologia de Sócrates, Fedão ou outro texto platônico sobre o personagem mencionado, vai constatar que Kreeft foi muito feliz nessa simulação, pois o estilo de argumentação e a linha de raciocínio é exatamente aquela já conhecida dos leitores de Platão.

Abaixo segue o Diálogo 1 (o mais longo). Os outros diálogos serão publicados posteriormente.

DIÁLOGO UM 

SÓCRATES EM UMA CLÍNICA DE ABORTO 

tempo: o presente
lugar: um hospital em Atenas
Personagens: Sócrates, Dr. Rex Herrod, abortista

Sócrates: Onde estamos? Dr.

Herrod: Nós? Eu sei perfeitamente bem onde estou, mas o senhor parece meio desorientado.

Sócrates: As aparências enganam. Às vezes aquele que acha que sabe, na verdade não sabe.

Herrod: O senhor é meio esquisito. Por que fala grego clássico?

Sócrates: Eu falo minha língua nativa.

Herrod: Qual é a sua cidade natal?

Sócrates: Atenas.

Herrod: Aqui? Você se parece mais com alguém que veio de longe.

Sócrates: De fato eu vim. Mas não de longe no espaço.

Herrod: Oh. Entendo.

Sócrates: Entende?

Herrod: Talvez o senhor queira conhecer a ala psiquiátrica.

Sócrates: Eu fui enviado exatamente para aqui.

Herrod: Você é médico?

Sócrates: De certa maneira.

Herrod: Qual a sua especialidade? Talvez esteja no lugar errado.

Sócrates: Esta é uma clínica de abortos, não é?

Herrod: Claro que sim. Você também realiza abortos?

Sócrates: De certa maneira. Eu aborto pensamentos.

Herrod: Pensamentos?

Sócrates: Sim. Falácias, inconsistências, ignorância. Eu interrompo gravidezes intelectuais defeituosas.

Herrod: Oh. Tudo isto!?

Sócrates: Não, isso não é tudo. Também sou um obstetra intelectual - um parteiro de idéias, por assim dizer.

Herrod: Um... parteiro de idéias?

Sócrates: Sim. Pensamentos lógicos. Consistências.

Herrod: Você parece um maluco. E o senhor? O que me diz desta estranha toga branca que está usando?

Sócrates: Estas são minhas roupas cotidianas. E o senhor? O que me diz desta estranha toga branca que está usando?

Herrod: Eu sou médico - Dr. Rex Herrod. Você mais parece um cruzamento entre um médico e um fantasma.

Sócrates: eu sou ambos, de certa forma.

Herrod: Bem, eu não acredito que o senhor é um médico, e não acredito em fantasmas.

Sócrates: Isto não faz a menor diferença. Eu estou aqui.

Herrod: E o que é que você quer?

Sócrates: Somente algum diálogo. Talvez o senhor pudesse satisfazer minha curiosidade e me falar um pouco sobre o seu trabalho aqui.

Herrod: Hmmm... Por que não se senta aqui nesta cadeira confortável enquanto eu tomo um café.

Sócrates: Você quer dizer esta cadeira desconfortável? . Tudo bem, mas eu não quero café.

Herrod: Posso pegar alguma coisa para você comer?

Sócrates: Sim. Alguns pensamentos, por favor.

Herrod: Você come pensamentos?

Sócrates: Certamente. Pra começar, como aperitivo, o que o senhor está fazendo aqui?

Herrod: Eu sei muito bem o que eu faço aqui. A questão é: o que você faz aqui?

Sócrates: O que faço aqui é formular perguntas sobre o que você faz aqui. Se você “sabe muito bem”, não haveria problema nenhum em me responder, teria?

Herrod: Você é uma pessoa estranha, quem quer que seja. Certo, vou jogar o seu joguinho, se você quer assim. Eu faço abortos aqui.

Sócrates: Você parece na defensiva.

Herrod: Certamente você faz idéia que meu trabalho é controverso.

Sócrates: Na verdade eu faço. Alguns acham que seu trabalho é bom e alguns acham que é mal.

Herrod: Mas não é nem um nem outro. É neutro, indiferente. Não é um assunto moral, mas um assunto médico.

Sócrates: O senhor é pago para fazer este trabalho, certo?

Herrod: É Claro.

Sócrates: E as pessoas pagam por coisas que ajudam, por coisas que prejudicam ou por coisas que nem ajudam nem prejudicam?

Herrod: Coisas que ajudam, com certeza. Chama-se 'prestação de serviços'.

Sócrates: E coisas que ajudam são boas, não são? Assim como coisas que prejudicam são ruins?

Herrod: Sim.

Sócrates: Então, o serviço que você presta deve ser bom, já que as pessoas pagam para prestá-lo, e somente são pagos os serviços que ajudam, e o que ajuda é sempre bom.

Herrod: Ok. Dá pra se dizer que é assim. Meu trabalho é bom, se você descreve as coisas desta maneira.

Sócrates: Você é quem coloca as coisas dessa maneira.

Herrod: E se for?

Sócrates: Então seu trabalho não é neutro, como disse antes, mas também nem bom nem mau. Você acredita que seu trabalho é bom, mas outras pessoas acreditam que é mau. Por que eles pensam assim? E como você se defende dos argumentos deles?

Herrod: De fato existem duas grandes questões. Você está perguntando sobre os dois lados da controvérsia sobre o aborto.

Sócrates: Em poucas palavras, como você diria.

Herrod: Por que você está me perguntando isto?

Sócrates: Eu também presto um serviço. Ajudo pessoas a saber exatamente o que fazem.

Herrod: Eu sei perfeitamente bem o que faço.

Sócrates: Veremos.

Herrod: Agora entendi. Você está interpretando o filósofo Sócrates.

Sócrates: Não. Não estou interpretando.

Herrod: Eu disse que não acredito em fantasmas. Mas como você diz, não faz diferença. Você está aqui, e se fizer questão, até posso chamá-lo de Sócrates.

Sócrates: Obrigado - mesmo que esteja me dando o que já é meu. Podemos começar?

Herrod: Tudo bem. Será divertido para você e pode ser instrutivo para mim.

Sócrates: Eu pensaria exatamente o contrário: é somente você que está se divertindo ao jogar um jogo comigo. Eu, por outro lado, realmente desejo saber, ­ quero ser instruído sobre esse assunto. Se você está no ramo de prestação de serviços, talvez possa executar um serviço sem preço para mim: Falo do serviço de me instruir.

Herrod: Combinado.

Sócrates: Diga-me então: Por que o seu trabalho é bom?

Herrod: Pensei que seu pequeno argumento já havia provado que ele é bom.

Sócrates: Meu argumento não. Seu argumento. E você não concorda com ele?

Herrod: Nosso, então. O que tem de errado com o argumento ?

Sócrates: Por uma coisa, ele carece de força demonstrativa. Ele não conta a causa, a razão real para a conclusão. Ele é obtido mais do efeito do que da causa. Então me diga: por que nosso trabalho é bom, Dr. Herrod?

Herrod: Deixe que meus oponentes digam por que ele é bom, se puderem. O ônus da prova é deles, não meu. Um suspeito é presumivelmente inocente até ser provado culpado, e uma ação deveria ser presumivelmente boa ou no mínimo neutra, até ser provada má. A “conjectura liberal” está do meu lado.

Sócrates: Aparentemente já temos uma mudança em nosso campo de batalha. Você parece ter assumido uma postura mais firme que sua postura inicial. Que ataques, então, seus oponentes usam para sobrepor esta “conjectura liberal”? Certamente precisam ter um argumento forte para sobrepor ao argumento de presunção de inocência.

Herrod: Não, Sócrates, o argumento deles é ridiculamente frágil. Eles usam um termo emocional para confundir o assunto.

Sócrates: E que termo é esse?

Herrod: Assassinato. Eles dizem que o aborto é assassinato. Então eles estão me chamando de assassino. Pior, eles estão chamando milhões de mulheres grávidas assassinas.

Sócrates: Talvez devêssemos começar fazendo distinção entre duas questões que os seus oponentes, aparentemente, falham em distinguir, já que chamam todas as mulheres que praticam abortos de assassinas.

Herrod: Bem, eles não dizem exatamente isso. Mas esta é a implicação lógica: se o aborto é um assassinato, , então um abortista é um assassino.

Sócrates: No sentido objetivo pode ser, mas não necessariamente no sentido subjetivo. Esta é a distinção que gostaria de estabelecer entre os dois questionamentos. A pergunta que gostaria de discutir com você é: o que é aborto, quer dizer, o ato em si? É ou não um assassinato? Esta questão, me parece, poderia se decidida sendo cuidadosos em nosso raciocínio. Mas a outra pergunta sobre a culpa pessoal de um indivíduo, o assunto da responsabilidade e a culpa me parecem questionamentos muito mais complexos. Ainda que o aborto fosse um assassinato, poderia ser que (tal como diriam muitos) fosse “culpa da sociedade, ou a culpa de uma má filosofia. Uma mulher grávida que vem até você não vem com a intenção de cometer um assassinato, vem? A pergunta que gostaria de discutir com você é: o que é aborto, quer dizer, o ato em si? É ou não um assassinato? Esta questão, me parece, poderia se decidida sendo cuidadosos em nosso raciocínio. Mas a outra pergunta sobre a culpa pessoal de um indivíduo, o assunto da responsabilidade e a culpa me parecem questionamentos muito mais complexos. Ainda que o aborto fosse um assassinato, poderia ser que (tal como diriam muitos) fosse “culpa da sociedade, ou a culpa de uma má filosofia. Uma mulher grávida que vem até você não vem com a intenção de cometer um assassinato, vem?

Herrod: Claro que não. Não é um crime cometido um assassino contratado. Aborto não é como um assassinato.

Sócrates: Isto é algo que, todavia, eu não sei. Essa é minha primeira pergunta: o que é aborto? Seria necessário um conhecimento mais que humano para ler o coração e a intenção, mas não é preciso mais do que a razão humana para definir o ato. Portanto, dado que ambos somos seres humanos racionais, poderíamos nos dedicar a esta tarefa.

Herrod: Tudo bem.

Sócrates: Seus opositores asseguram que o aborto é um assassinato, e você assegura que não.

Herrod: De um modo claro e simples: Sim.

Sócrates: Como você definiria assassinato?

Herrod: Eu? Lembre-se que o ônus da prova é deles? Foram meus acusadores que introduziram esse termo. Por que não pergunta pra eles?

Sócrates: Quando encontrar algum deles, certamente o farei. Mas agora estamos sós, você e eu. Como você define assassinato?

Herrod: Suponho que seja matar um ser humano inocente.

Sócrates: Seus opositores compartilham esta definição?

Herrod: Parecem que chamam assassinato qualquer forma de supressão da vida.

Sócrates: Chamam a caça de animais para comer de assassinato?

Herrod: Não, claro que não.

Sócrates: Por que não?

Herrod: Porque não se trata de tirar a vida de seres humanos.

Sócrates: Eles chamam as táticas defensivas de guerra de assassinato?

Herrod: Não, apesar de que - em geral - serem falcões, e não pombos.

Sócrates: Que filósofos frívolos têm! E quando o estado executa a um traidor ou a um assassino eles chamam de assassinato?

Herrod: Não, em geral, não são contra a pena de morte.

Sócrates: Por que não?

Herrod: Suponho que é porque não se trata de matar a um ser humano inocente.

Sócrates: Qual é, então, a sua definição de assassinato?

Herrod: Bom... sim...

Sócrates: Então você concorda com esta definição do termo.

Herrod: Suponho que sim. O que não estamos de acordo é que o aborto deva ser chamado assassinato.

Sócrates: Bom, vejamos então se se ajusta ou não à sua definição de assassinato. A definição tem três partes. Primeiro, o aborto é uma forma de supressão da vida?

Herrod: É a interrupção de uma gravidez.

Sócrates: O feto é morto?

Herrod: Não gosto dessa terminologia emocional.

Sócrates: Seus gostos e desgostos são emoções, não são?

Herrod: É Claro.

Sócrates: Então é você que está tratando o termo mais emocional do que racionalmente.

Herrod: Somente porque eles começaram. Você está parecendo uma criança acusada de brigar com o colega que diz: “ele me começou”. É bem possível que assim seja, mas era necessário prosseguir? Não existe uma maneira melhor? Não teríamos que apelar para a razão?

Herrod: Claro.

Sócrates: Muito bem. Racionalmente, o que significa matar?

Herrod: Suponho que queira dizer impor a morte a um organismo vivo.

Sócrates: E acaso o objeto do aborto é um organismo vivo?

Herrod: É Claro.

Sócrates: E o procedimento conclui na morte?

Herrod: Sim.

Sócrates: Uma morte é forçada?

Herrod: Sim.

Sócrates: Então aborto é um jeito de matar.

Herrod: Sim, mas não é assassinato.

Sócrates: Isso ainda não está decidido. Agora vejamos a definição de assassinato que estamos de acordo?

Herrod: Acaso não se recorda?

Sócrates: Na minha idade a memória prega algumas peças.

Herrod: Qual é a sua idade?

Sócrates: Se dissesse você não acreditaria.

Herrod: Suspeito que não. Mas também suspeito que você não é tão esquecido quanto diz.

Sócrates: Não tem importância. De qualquer forma confio que sua memória está em perfeito estado. Assim sendo, diga-me: em que definição de assassinato estamos de acordo?

Herrod: Concordamos que assassinato é tirar a vida de um ser humano inocente.

Sócrates: Muito bem. Agora vejamos se o aborto cabe dentro desta definição, tal como seus opositores asseguram, ou se é como você diz. Primeiro, estamos de acordo que aborto é uma forma de matar, não é verdade?

Herrod: Sim.

Sócrates: Em segundo lugar, o feto cuja vida é tirada, é culpado de algum crime ou é inocente?

Herrod: Culpado ele não é. Ainda que não seja exato dizer que é inocente, a não ser que se trate de uma pessoa. Células não podem ser culpadas nem inocentes.

Sócrates: Mas se fosse uma pessoa, seria inocente?

Herrod: Se fosse uma pessoa, sim.

Sócrates: Então, se o feto for um ser humano, o aborto deve ser qualificado como assassinato, porque se ajusta às três partes da definição.

Herrod: Por que tanto malabarismo com as palavras, Sócrates? Na realidade é bastante simples: O aborto não é assassinato porque um feto não é uma pessoa. Aborto não significa por fim a um ser humano, mas ajudar alguém a dar término a uma gravidez indesejada. Só isto.

Sócrates: Você parece um pouco impaciente.

Herrod: Francamente sim. Estou impaciente com todo este jogo de palavras. E também perdi a paciência com o rumo que tomou essa discussão: centrando-se no feto em lugar da mãe.

Sócrates: Tenho esperança de não ter sido eu, mas nosso mestre comum que nos tenha conduzido até este ponto.

Herrod: Nosso mestre comum? Que quer dizer com isto?

Sócrates: Por acaso não concordamos em ser racionais? Ser racional significa seguir a razão, seguir o argumento por onde quer que nos leve, não significa nem seguir a você nem a mim.

Herrod: O ponto em que fomos levados, seja por você ou pela razão, Sócrates, é muito discutível: se o feto é uma pessoa ou não. Prefiro falar de assuntos menos especulativos, como os direitos das mulheres e as responsabilidades sociais, bem como dos aspectos levais do assunto.

Sócrates: Mas o que você prefere discutir não deveria ser mais importante para nós do que o que eu prefiro discutir. A não ser que ambos estejamos de acordo em seguir nosso amo comum, só estaremos perseguindo um ao outro, em um concurso de vontades, como dois meninos jogando 'King of Mountain'. Você seguirá ou não nosso mestre comum?

Herrod: Ah, certamente quero ser racional. Meus oponentes é que estão histéricos.

Sócrates: Então não deve sentir-se reticente em seguir o argumento.

Herrod: Não me sinto reticente. Mas sinto resistência ao ser confrontado com perguntas claras, práticas e contestáveis, como são os direitos da mulher, ao invés de perguntas debatíveis, teóricas e impossíveis de responder, tais como se o feto é ou não uma pessoa.

Sócrates: Se a questão dos direitos das mulheres é tão clara e de fácil resposta, por que há tanto desacordo a respeito?

Herrod: Bom, a outra pergunta não é contestável sob nenhuma circunstância.

Sócrates: Como é possível saber se uma pergunta é contestável ou não antes de tentar respondê-la?

Herrod: Mas é tão... tão malditamente teológico!

Sócrates: Palavra estranha de utilizar para os deuses! Mas ainda que a questão fosse teológica, o que não creio, por que não poderia se ajustar à regra do nosso mestre comum?

Herrod: O mestre comum resolve questões racionais. Questões teológicas não são questões racionais. São assuntos de fé ou de superstição.

Sócrates: Não deveríamos investigar as coisas antes de qualificá-las como supersticiosas? Recusar-se a investigar não seria também supersticioso?

Herrod: Mas agora não podemos investigar a teologia.

Sócrates: Não, e também não vejo por quê a questão que estamos investigando é teológica, em absoluto. Por que devemos falar dos deuses para poder falar do feto?

Herrod: Não creio que devamos falar de teologia. Em geral meus opositores já fazem isto.

Sócrates: Mas eles não estão aqui agora, não é? Estamos somente nós dois.

Herrod: Você já disse isto antes.

Sócrates: Sim, e tornarei a dizer sempre que houver necessidade.

Herrod: E você sentiu que precisava dizer...

Sócrates: Sim, quando esquece que são suas crenças e suas ações que estamos examinando agora.

Herrod: Mas é do ataque deles que eu tenho que me defender.

Sócrates: Sim, mas ao examinarmos seu trabalho não estamos nos deixando levar por seus opositores, ou por mim, mas pelo nosso mestre comum, se é que o permitimos. Continuaremos a segui-lo?

Herrod: Acho que deveríamos sim.

Sócrates: Isto significa que precisamos seguir o argumento onde quer que nos leve. Você fará isto? O argumento é o elemento do mestre comum.

Herrod: Seguirei o argumento. A razão é meu amo. A fé é deles.

Sócrates: Não sei quem é o mestre deles. Eles não estão aqui. Quanto a você, se a razão é ou não seu amo, é precisamente o que estamos investigando neste momento.

Herrod: Por que chama a razão de mestre comum se nem todos a seguem?

Sócrates: Porque é igual à luz do sol. Brilha para todos, mesmo enquanto alguns fecham os olhos ou fujam para as sombras. É tão comum como a luz do dia.

Herrod: Diferentemente da fé.

Sócrates: Sim, diferente da fé. Certas ou falsas, as crenças sobre os deuses não são nem simples nem comuns. São mistérios, e variam de um lugar para outro e de uma mente para outra. Há muitas crenças diferentes, mas não há muitas lógicas diferentes.

Herrod: Concordo com você de todo o coração, Sócrates. Eu também sou um cético no que se refere à estas obscuridades.

Sócrates: Eu não disse que era cético a respeito, só que são obscuras, diferentemente da razão. Minha pergunta agora é: você serve ao mestre comum e continuará com o argumento?

Herrod: Já disse que faria. Por que insiste em perguntar?

Sócrates: Você se deu conta de que já chegamos a um ponto crucial da discussão?

Herrod: Está se referindo a questão sobre se o feto é uma pessoa ou não?

Sócrates: Exatamente.

Herrod: Não penso que o estado metafísico abstrato do feto seja o ponto crucial da discussão.

Sócrates: Mas se o feto é uma pessoa humana, o aborto é um assassinato de acordo com o argumento.

Herrod: Se... se... se! Estamos sendo conduzidos pelo faro nesta questão. Argumentos abstratos podem provar qualquer coisa.

Sócrates: Argumentos bons ou maus?

Herrod: Maus, eu acho.

Sócrates: E o que é um mau argumento? Acaso não é o que utiliza seus termos de maneira ambígua ou que começa com uma falsa premissa, ou que não pode demonstrar que sua conclusão necessariamente está desconectada das suas premissas?

Herrod: Correto. Estes são os três pontos de revisão de um argumento. Eu também estudei lógica.

Sócrates: Então precisamos observar a lógica do argumento. Primeiro ponto de revisão: definimos nossos termos equivocadamente? Utilizamos algum termo de forma ambígua?

Herrod: Acho que não. Fomos meticulosamente cuidadosos.

Sócrates: Deixemos de lado por um momento o segundo ponto de revisão e vamos analisar o terceiro. O argumento é logicamente necessário? A conclusão segue a premissa? Se alguém fosse aceitar as premissas, primeiramente que matar um ser humano inocente é assassinato e, segundo, que o aborto consiste em tirar a vida de um ser humano inocente; não se segue necessariamente que o aborto é um assassinato?

Herrod: Sim, mas ...

Sócrates: Então você nega a premissa.

Herrod: Nego a premissa que o aborto seja matar um ser humano inocente. Sim. O argumento não passa no segundo ponto de revisão.

Sócrates: Mas se o aborto é a imputação da morte, e o feto é inocente - ou não é culpado de nada, tal como você disse anteriormente.

Herrod: Sim, mas ele não é um ser humano.

Sócrates: Ah, então você optou por enfrentar a assim chamada 'questão metafísica' sobre o feto.

Herrod: Grrrrrrr.

Sócrates: Por que você reluta em fazer isso?

Herrod: Porque sou um médico, não um metafísico!

Sócrates: Permita-me discordar de você, doutor. Nem todos somos médicos, mas todos somos metafísicos.

Herrod: Como assim? Isso é ridículo. Eu sei o que sou.

Sócrates: Nesse caso, você é um metafísico. Você sabe o que você é.

Herrod: Creio que precisamos definir nossos termos.

Sócrates: Essas palavras são música para os meus ouvidos!

Herrod: De alguma forma pensei que fosse dizer algo parecido! Está bem então, o que é metafísica, oh grande músico metafísico?

Sócrates: Metafísica trata-se de 'pensar no ser', pensar no que alguma coisa 'é'.

Herrod: E por que todos deveriam pensar sobre o ser? Não leio muito sobre isto nos jornais.

Sócrates: Suponha que você é acusado de assassinato por ter comido um pescado. Como você se defenderia?

Herrod: Você está brincando ou respondendo a minha pergunta?

Sócrates: Respondo a sua pergunta se você responder a minha. Minha resposta está na sua resposta.

Herrod: Mas sua pergunta é um disparate, Sócrates. Ninguém me acusaria de assassinato por ter comido um pescado.

Sócrates: E por que não?

Herrod: Bom, porque comer um pescado não é assassinato.

Sócrates: Consegue ver? Você está fazendo metafísica. Está pensando sobre o ato. Agora observe e pratique um pouco mais de metafísica.

Herrod: Não se eu puder evitar.

Sócrates: Meu ponto é exatamente este: você não pode evitar. Agora diga-me, por favor: por que comer um pescado não é um assassinato?

Herrod: Outra pergunta idiota.

Sócrates: E por que comer outro ser humano é assassinato? Por que o canibalismo é assassinato?

Herrod: Chega de perguntas idiotas.

Sócrates: Se o peixe consumido fosse um ser humano, isto faria de você um canibal?

Herrod: Sócrates, isto é ridículo.

Sócrates: Por favor, me explique por quê.

Herrod: Bom, porque todos sabem que um peixe não é um ser humano.

Sócrates: Consegue ver agora? Todos somos metafísicos.

Herrod: Está bem, todos somos metafísicos. E eu com isto?

Sócrates: Ser um metafísico é fazer afirmações sobre a natureza de alguma coisa.

Herrod: Sim.

Sócrates: Mais uma coisa: quando sabemos o que é, nosso conhecimento faz com que uma coisa seja o que é? Quando sabemos que um pescado é um pescado e que não é um ser humano, foi nosso conhecimento que tornou o pescado o que ele é?

Herrod: Claro que não. A menos que a ciência seja apenas fantasia.

Sócrates: Muito bem! Se alguém não sabe o que é um peixe, este desconhecimento muda a natureza do próprio peixe?

Herrod: Não, mas mudaria o significado do peixe para esta pessoa. Se eu pensasse que um pescado fosse humano, o trataria de maneira diferente.

Sócrates: Mas se fizesse isto - falasse com ele, o tirasse da água e lhe vestisse com calças - você se questionaria?

Herrod: Claro que não.

Sócrates: Portanto, a ignorância não altera a natureza das coisas, da mesma maneira que o conhecimento também não altera.

Herrod: Claro que não.

Sócrates: Muito bem. Agora consideremos o caso de um escravo. Um escravo é um ser humano?

Herrod: Claro que é um ser humano.

Sócrates: Todo mundo sabe disto?

Herrod: Acho que nem todo mundo. No passado houve pessoas que realmente pensaram que os escravos eram uma espécie sub-humana. Mesmo na iluminada Atenas, há alguns que pensavam desta forma, não é?

Sócrates: Para minha vergonha admito que sim. Mas a ignorância destes indivíduos não mudou a real natureza dos escravos.

Herrod: Claro que não.

Sócrates: Agora, vamos falar sobre o feto...

Herrod: Esta é uma questão de opinião, Sócrates, não um fato claro, como escravos ou peixes.

Sócrates: Concordamos que quem come um peixe não é um assassino pelo simples fato de um pescado não seja humano, quer o sujeito que come saiba disto ou não.

Herrod: Sim.

Sócrates: E que você seria um assassino se matasse um escravo, porque um escravo é um ser humano, quer alguém pense assim ou não?

Herrod: Sim.

Sócrates: Então, mesmo que alguns pensem que o feto é humano e outros pensem que não, se for humano, quem o matar é um assassino. Nossa premissa não nos conduz a esta conclusão? Se o aborto é ou não assassinato, esta conclusão depende da Informação de que o feto seja ou não um ser humano.

Herrod: Não. Depende se o chamamos ou não de ser humano. Se o chamamos de pessoa, então o aborto é um assassinato. Se o chamamos de grupo de células, o aborto é apenas uma cirurgia.

Sócrates: Chamar aborto como assassinato depende se o feto é uma pessoa ou não. Mas se o aborto é assassinato depende se o feto é uma pessoa, não é?

Herrod: Mas se o feto é ou não uma pessoa é uma questão de opinião. Como se atreve a dogmatizar sobre isto!

Sócrates: Eu não disse que o feto é uma pessoa. Disse que se fosse, então o aborto seria um assassinato.

Herrod: Bom, ninguém sabe isto.

Sócrates: Não sei se outros sabem ou não. Somente você se encontra agora comigo. E o que você acha que deveríamos fazer ao saber que não sabemos algo, especialmente quando se trata de algo tão importante?

Herrod: Suponho que quer que eu diga: “Deveríamos buscar a verdade” ou algo parecido.

Sócrates: Certo, algo parecido seria uma excelente resposta.

Herrod: Mas os fatos científicos são conhecidos por ambos os lados, Sócrates, e sem dúvida segue existindo esta diferença de opiniões. É uma perda de tempo discutir a respeito. Ambos os lados já discutimos até ficar com a cara vermelha e nenhum dos lados convenceu o outro, nem o fará. A única política diante de tal diferença de opiniões é a tolerância, a liberdade de escolha, a pró-escolha.

Sócrates: Então a questão sobre a natureza do feto não pode ser respondida? A diferença de opiniões não pode ser resolvida?

Herrod: Não.

Sócrates: E como você pode ter certeza disto?

Herrod: Também acabo de explicar isto. As pessoas já discutiram o tema até ficar com a cara vermelha.

Sócrates: E você? Já discutiu a respeito até ficar vermelho?

Herrod: Claro que não. Para que perder tempo em um assunto teórico que, de qualquer maneira jamais poderá ser resolvido?

Sócrates: Não tínhamos concordado que a única maneira de saber se uma pergunta pode ser respondida é tentar respondê-la?

Herrod: Sim, e isto é exatamente o que foi feito, sem sucesso.

Sócrates: Até ficar vermelhos...

Herrod: Sim.

Sócrates: Mas eles não se encontram aqui agora, não é? E você ainda não está com a cara vermelha.

Herrod: Você segue repetindo a mesma coisa.

Sócrates: Você esquece a cada momento. A palavra verdade (alÄ“theia) em nosso idioma significa literalmente “não esquecer”.

Herrod: É verdade. Eu esqueci.

Sócrates: Touché. Voltemos ao ponto. Você concorda que a única maneira de saber se uma pergunta pode ser respondida é tentando respondê-la?

Herrod: Sim.

Sócrates: E você percebe o que se segue à questão do feto, não é?

Herrod: Bom, está bem. Continue. Vamos tentar.

Sócrates: Não sem você. Eu sou somente seu obstetra intelectual, lembra?

Herrod: Sim. Mas asseguro que será em vão. Espero que não se importe se eu tomar mais uma xícara de café antes de começar.

Sócrates: Antes de começarmos. Continue. Ms me maravilho com seu dom de clarividência. Você é um profeta?

Herrod: Que quer dizer?

Sócrates: Fico maravilhado de você conhecer os fatos antes que ocorram.

Herrod: Que fato?

Sócrates: De você saber que o resultado da nossa busca será em vão.

Herrod: Não precisa ser profeta para saber isso, Sócrates. Outras pessoas trilharam este caminho antes de nós.

Sócrates: E eles...

Herrod: ... não estão aqui agora, já sei. Suponho que só estou ansioso.

Sócrates: Pra que? Para encontrar a verdade ou por alguma outra coisa?

Herrod: Para encontrar a verdade, é claro, como você. O mestre comum, lembra?

Sócrates: Tento relembrar a todo momento. Eu também sirvo ao mestre comum e espero não ser um servo impaciente.

Herrod: De que maneira sentir impaciência para encontrar a verdade poderia ser mal?

Sócrates: Creio que posso te mostrar. Você diria que o principal para quem serve o mestre comum é encontrar a verdade?

Herrod: É Claro.

Sócrates: É nisso que é impaciente. Eu não posso concordar com você neste ponto.

Herrod: O que? Sócrates, estou surpreendido de escutar isto de você. Que outra coisa poderia vir antes de encontrar a verdade?

Sócrates: Talvez considerasse a busca da verdade primeiramente.

Herrod: (Silencio. Um pequeno sorriso)

Sócrates: Doutor, esta é a primeira vez que o vejo sorrir.

Herrod: (Um silêncio maior. Um sorriso mais amplo)

Sócrates: Seu segundo sorriso, doutor. Que eloqüência! Muito mais loquaz que minhas meras palavras, porque provem do silêncio. Temo que muitas das minhas palavras advenham mais de outras palavras do que a partir do silencio. Mas agora me encontro na presença da sabedoria, um dom dos deuses, certamente, e muito maior que o dom da profecia que descuidadamente lhe descrevi anteriormente: o dom do silêncio e a aprendizagem da primeira lição que aprendemos. Mas sou eu que estou divagando agora, e é você que permanece sabiamente calado. Talvez do silêncio possam surgir umas poucas palavras que não sejam somente falatório. Entretanto, não investigamos a questão do feto. Apenas falamos em investigar.

Herrod: Então comecemos.

Sócrates: Certamente são profundas as palavras, Doutor. Dão testemunho da sua sabedoria. Que os iniciantes comecem. Passemos à tarefa de averiguar se o feto é ou não uma pessoa, supondo que antes teremos que saber o que é uma pessoa. Decerto utilizamos as palavras pessoa e ser humano como sinônimos. Qual das duas você acha que devemos usar.

Herrod: Ser humano. Poderia haver seres inteligentes em outros planetas que não sejam humanos. A estes poderíamos também chamar pessoas - as pessoas marcianas, por exemplo. Limitemo-nos à Terra.

Sócrates: Então será ser humano, um terráqueo. Bom, agora me diga: o que é um ser humano?

Herrod: Ah, todos sabem o que é um ser humano, Sócrates. Não é necessário que eu lhe diga isto.

Sócrates: Oh céus, nossa sabedoria parece estar nos abandonando. Mas talvez umas poucas perguntas possam fazê-la regressar. Por favor, explique-me isto: quando diz que todos sabem o que é um ser humano, quer dizer todos os gatos e cachorros e árvores e flores?

Herrod: Você está sendo ridículo de novo, Sócrates. Me pergunto qual de nós perdeu a sua sabedoria.

Sócrates: Eu me pergunto a mesma coisa. Mas se não são todos os gatos e os cachorros, então todos o que? Tenha paciência com a minha simplicidade.

Herrod: Todos os seres humanos.

Sócrates: Todos os seres humanos sabem o que é um ser humano?

Herrod: Sim, todos os seres humanos normais.

Sócrates: E você é um desses seres humanos normais?

Herrod: É Claro.

Sócrates: Então, como você sabe, diga-me, rogo, não mantenha este tesouro da sabedoria fora do meu ávido alcance.

Herrod: Sócrates, isto é insano. Um ser humano é o que você diante de você. Pessoas como nós. Ou como eu, em todo caso; não estou muito certo a seu respeito.

Sócrates: Mas eu não lhe pedi exemplos de seres humanos, mas que me dissesse qual a natureza comum a todos os seres humanos. Uma definição explica a natureza comum de uma espécie, não é assim? Então, por favor, diga-me: qual é? O que é que nos faz humanos, os humanos?

Herrod: Em outras palavras, quer que eu defina a uma pessoa.

Sócrates: Sim, se deseja utilizar os termos como sinônimos.

Herrod: Bom... somos seres conscientes.

Sócrates: Os animais também são conscientes?

Herrod: De uma certa forma.

Sócrates: Então creio que já sabe qual será minha próxima pergunta.

Herrod: Posso adivinhar.

Sócrates: Então adivinhe.

Herrod: Suponha que eu adivinhe suas perguntas. Poderia jogar no papel de interrogador por uns momentos e você de respondedor.

Sócrates: Se pensa que poderíamos avançar melhor até nossa meta desta maneira, podemos tentar. Adiante, formule suas perguntas e eu as responderei da melhor forma que possa com minha pequena sabedoria.

Herrod: Comecemos com esta pergunta: em que sentido um gato ou um cachorro tem consciência?

Sócrates: Quer que eu diga a verdade ou arrisque uma louca conjectura?

Herrod: Quero que me diga a verdade.

Sócrates: Bom, pra dizer a verdade não sei de que maneira um gato ou um cachorro tem consciência, porque eu não sou nem um gato nem um cachorro, e também porque jamais encontrei com algum que pudesse me responder perguntas sobre si mesmo.

Herrod: Pensei que você ia colaborar.

Sócrates: Estou perfeitamente disposto a cooperar se você formular perguntas que eu possa responder. Pergunte-me sobre os seres humanos, e lhe darei uma resposta a partir de minha própria experiência. Mas não tenho experiência de gato nem de cachorro para basear minha resposta.

Herrod: Você observou os gatos e os cachorros não é?

Sócrates: Muitas vezes.

Herrod: Então você sabe um pouco sobre comportamento animal.

Sócrates: Sim.

Herrod: E por acaso este comportamento não é sinal de consciência? Não interpretamos que uma pessoa dormindo está inconsciente porque exibe um certo padrão de comportamento, como olhos fechados, corpo quieto, respiração lenta e regular? E não julgamos a partir de uma pessoa desperta que está conscientemente alerta porque observamos uma conduta diferente?

Sócrates: Tanto sua ciência quanto sua lógica são impecáveis, doutor. É exatamente como você disse.

Herrod: Então você sabe alguma coisa sobre a consciência animal, uma vez que observa o comportamento animal, e o comportamento animal exibe consciência.

Sócrates: Aparentemente a sabedoria está voltando pra nós. Nossa tentativa de inverter os papéis parece estar surtindo resultado.

Herrod: Então responda a minha pergunta: qual é a diferença entre a consciência humana e a consciência animal, manifestada através do comportamento. Não é necessário que me explique o que os animais tem que nós não temos, só o oposto: o que nós temos que os animais não tem? Esta é uma pergunta que intriga muitos cientistas e filósofos. Se puder me dar uma resposta simples e verdadeira a esta pergunta, é porque você seja mais sábio que todas essas pessoas que permaneceram intrigados e não puderam responder.

Sócrates: Eu também me encontro entre os intrigados, porque sei que não sou mais sábio que todos os outros, mas tenho uma resposta muito simples a sua pergunta. Uma resposta que os humanos já sabem há muito tempo.

Herrod: E então. Acabe logo com o suspense. Qual é?

Sócrates: Não há suspense, pois há dois mil e quatrocentos anos, desde que nós, os filósofos, definimos o homem como um animal racional. Seguramente este fato deve ter sido noticiado. Isto já não é uma notícia nova.

Herrod: Mas Sócrates, se está satisfeito com esta velha definição, de nos distinguir dos animais por ter razão, vai se meter em um emaranhado de problemas. De um lado, esta não é uma “definição operacional”, quer dizer: não especifica uma conduta observável. Mas você admitiu que a consciência é exibida através da conduta. Que conduta é especificamente racional? Segundo, como pode distinguir o raciocínio humano de um computador, da inteligência artificial? Você sabe sobre os computadores, não é?

Sócrates: Sim, li sua biblioteca inteira. E me parece mais simples nos distinguir dos computadores do que dos animais e faze-lo “operativamente” como você disse. Gostaria de ouvir esta “simplicidade” dos seus lábios. E não diga que somos diferentes dos animais por ter raciocínio e distintos dos computadores porque temos sentimentos, porque então só poderíamos ser animais ou computadores. Por favor, diga-me a única coisa que nos distingue de ambos. O que nós temos que nem os computadores nem os animais tem? E recorde, deve ser manifestada em sua conduta.

Sócrates: Que pergunta simples de responder! Existe algo que a razão humana faz que nunca é encontrado em nenhum animal ou computador.

Herrod: E bem... o que é?

Sócrates: Quer dizer que você de fato não sabe?

Herrod: Não, e também o resto do mundo acadêmico não sabe, professores que usam barbas e lentes e vão de um lado a outro com passos largos e asseguram que seus computadores pensam.

Sócrates: Mas esses professores não estão aqui agora, estão?

Herrod: Não mas eu estou aqui e quero saber.

Sócrates: Mas você acaba de responder a sua própria pergunta.

Herrod: Como? Que quer dizer?

Sócrates: Ainda não sabe?

Herrod: Não, eu realmente não sei. Conte-me!

Sócrates: Novamente você acaba de responder a sua própria pergunta.

Herrod: Pare de jogar comigo. Esta é uma pergunta séria.

Sócrates: E você quer saber a resposta.

Herrod: Sim.

Sócrates: Esta é sua resposta: a vontade de saber. Nenhum animal ou computador é um filósofo, um amante e buscador de sabedoria. Em termos simples e sensíveis de observação por conduta, nenhum animal ou computador faz o que estivemos fazendo até agora: formular perguntas. Mesmo que os computadores raciocinam - o que não asseguro - não desejam fazê-lo. A única coisa que jamais verá acontecer é questionar sua programação, a não ser que seja programada para fazê-lo, e então não questiona esta programação. Sempre existe um programa sem questionamento, tudo é feito obedecendo o programa. Os computadores são obedientes, a razão é desobediente. Nós somos obedientes à razão ao questionar nossa programação. Nossos pais e mestres nos ensinaram a pensar certas coisas, mas nós questionamos. Somos filósofos.

Herrod: Eu sou médico.

Sócrates: Você é um ser humano, portanto é um filósofo. Você quer saber, pois acaba de me dizer isso três vezes.

Herrod: Sua simplicidade de deixa aturdido, Sócrates. Mas não posso refutá-la.

Sócrates: E por que quer refutá-la?

Herrod: Suspeito de respostas simples.

Sócrates: Por que? Talvez porque pensa que provavelmente são incorretas, ou é por alguma outra razão?

Herrod: Porque penso que não certas, é claro.

Sócrates: Então você deseja a verdade?

Herrod: É Claro.

Sócrates: Então você é tão simples quanto eu.

Herrod: Grrrrrr! Não tão simples, creio, para não poder encontrar o caminho de retorno para nossa argumentação principal. Nos desviamos do caminho para falar dos animais, dos computadores e da razão; de onde retomamos o olho da discussão?

Sócrates: Necessitávamos de uma definição de um ser humano, lembra-se?

Herrod: Ah, sim.

Sócrates: E obtivemos uma. Uma muito antiga, na verdade. O homem é um animal racional, um que deseja saber.

Herrod: E pra onde vamos a partir daqui?

Sócrates: Aonde o argumento nos levar. Lembremo-nos porque era necessário ter uma definição de ser humano.

Herrod: Ah, sim. Para averiguar se um feto é ou não um ser humano. Ahá!! Aqui estamos. Por acaso já observamos um feto formular perguntas?

Sócrates: Não.

Herrod: E um ser humano é aquele que formula perguntas?

Sócrates: Sim.

Herrod: Portanto, um feto não é um ser humano e, conseqüentemente, o aborto não é um assassinato. Quod erat demonstrandum. Finis Consummatum est. Caso encerrado.

Sócrates: Se importaria se eu retomasse meu papel de interrogador somente por uns minutos? É possível que caiam um ou dois fios soltos, para dize-lo de alguma maneira, que seguramente precisamos amarrar para fechar nosso argumento; umas poucas coisas que talvez tenhamos esquecido. Se estiver errado, estaremos duplamente seguros que nossa argumentação está completa através desta tediosa revisão. Então, por favor, continue comigo um pouco mais. Há algo que continua me incomodando.

Herrod: E qual é? Penso que o argumento parece estar bem definido. Você precisa questionar tudo o que eu digo?

Sócrates: Quero questionar algo que eu disse. Me pergunto se estava completamente correto ao definir um ser humano como alguém que formula perguntas.

Herrod: Por que você está se questionando agora?

Sócrates: Considere um bebê. Você o chamaria de ser humano?

Herrod: É Claro. Entendi. Você está me perguntando pela diferencia entre o aborto e o infanticídio. Bom...

Sócrates: Não, estou perguntando se você diria que um bebê é um ser humano. Uma pergunta de cada vez.

Herrod: Sim, um bebê é um ser humano.

Sócrates: E um bebê formula perguntas?

Herrod: Não.

Sócrates: Então, talvez não devêssemos ter definido um ser humano como alguém que faz perguntas. E existe outra situação: não existe a situação definido como dormir sem sonhar? Alguma vez dorme a noite sem sonhar?

Herrod: Não só a noite, mas as vezes durante o dia; por exemplo, quando alguém me aborrece com argumentações abstratas.

Sócrates: Aprecio sua vontade de buscar a verdade, mesmo estando seus sentimentos aborrecidos. Então, quando se dorme sem sonhar, formula perguntas?

Herrod: Eu não penso assim.

Sócrates: E se eu o matasse enquanto dorme, seria culpado de assassinato?

Herrod: Claro que seria. Não deixo de ser uma pessoa quando caio no sono, deixo de funcionar racionalmente quando durmo.

Sócrates: Então existe uma diferença entre ser uma pessoa e funcionar como tal. (Parece que caímos no hábito de utilizar os termos pessoa e ser humano como sinônimos, apesar de nossa decisão anterior de não fazê-lo).

Herrod: Sim. Ser uma pessoa não necessariamente é funcionar como tal.

Sócrates: Então, tanto um bebê como alguém que dorme, e que não funcionam como pessoas, são pessoas de qualquer maneira?

Herrod: Sim.

Sócrates: Então o fato de o feto não funcione como uma pessoa não prova que não seja uma.

Herrod: Não, mas também não prova que seja uma pessoa.

Sócrates: E o que ele é então, um peixe?

Herrod: É um ser humano potencial. Se dissemos que o feto é uma pessoa só porque crescerá até converter-se em uma, confundimos a realidade com o potencial.

Sócrates: Uma distinção muito útil, doutor. Uma das grandes ferramentas conceituais do meu neto intelectual Aristóteles. Sem dúvida um X potencial deve ser um Y real. Se o feto não é uma pessoa real, o que é na realidade?

Herrod: Não sei.

Sócrates: E ainda sim o mata?

Herrod: Espere um momento! Está dizendo que o feto é uma pessoa somente porque é uma pessoa potencial?

Sócrates: Não.

Herrod: Espero que não, porque se for assim, então até mesmo um espermatozóide ou um óculo também é uma pessoa, e o espermacídio se converte em homicídio. De fato, até o lodo primordial que evoluiu até converter-se em nós durante dez milhões de anos é uma pessoa potencial e matar lodo se converte então em assassinato.

Sócrates: Ah, sim. Nosso pai Iôda. Ler sua biblioteca científica e conhecer seus novos deuses foi para mim uma experiência fascinante. Um verdadeiro avanço com respeito aos nossos. Em nossa ignorância, pensávamos que éramos os filhos bastardos dos deuses do firmamento, em lugar de pensar que éramos os filhos legítimos do barro da terra. Parece que sabíamos muito pouco sobre os verdadeiros deuses.

Herrod: E sobre o que vocês sabiam?

Sócrates: Oh, somente coisas simplórias e infantis que vocês parecem ter superado, coisas como o nascimento e a morte, a razão e a virtude.

Herrod: Noto um tom de sarcasmo, Sócrates? Você está malignizando a ciência moderna?

Sócrates: Claro que não. Por acaso malignizaria meu próprio tataraneto? No entanto, suas filosofias modernas, bom, isto é outra coisa.

Herrod: Então não teria objeções em falar de ciência no lugar de filosofia.

Sócrates: Certamente não. Agora voltemos a nossa pergunta e falemos cienficamente dela. O que é o feto?

Herrod: Ah, achei que estivéssemos falando do barro primordial.

Sócrates: Seu trabalho aqui é abortar o lodo?

Herrod: Não.

Sócrates: Então, voltemos a nossa pergunta: o que é um feto?

Herrod: Sócrates, sua monotonia me incomoda.

Sócrates: Isto é um fato interessante sobre a psique, mas não altera o argumento.

Herrod: Você está considerando o assunto somente do ponto de vista do feto. Está ignorando a mãe. Suponho que em muito pouco tempo estará qualificando o aborto como “matar a um bebê” em lugar de como “encerrar uma gravidez”.

Sócrates: Sim, se for pra ser assim. Só me impulsiona uma coisa. De que outra maneira se encerra uma gravidez se não é matando o bebê, ou o feto, se prefere chama-lo assim?

Herrod: Mas você está ignorando a mãe.

Sócrates: Certamente não desejo fazer isso, porque a mãe é. Talvez possamos retornar nela depois de terminarmos de investigar o feto.

Herrod: O feto, o feto, sempre toda esta preocupação pelo feto. Você é um fetichista do feto ou um fetoísta.

Sócrates: Tenho pelo menos duas razões pelas quais quero saber o que é o feto. Você acaba de me recordar uma delas ao me lembrar que também tenho que pensar na mãe.

Herrod: E quais são?

Sócrates: Da mesma que a mãe é, e tenho que pensar nela porque é, o feto também é, e é necessário que pense nele exatamente pela mesma razão. Algum argumento poderia ser honesto se ignorássemos o que é?

Herrod: Bom... não.

Sócrates: E minha segunda razão é que o feto é a vítima.

Herrod: Você tem que usar esta linguagem?

Sócrates: Sim, pois é apropriada ao que é. Vamos revisar e averiguar se é o não apropriado. O que você diria que é uma vítima. Não é alguém que sofre um dano?

Herrod: Sim.

Sócrates: E por acaso o feto não sofre dano quando é morto?

Herrod: É pelo bem da mãe.

Sócrates: E pelo bem do feto?

Herrod: Feto, feto! Você passa da mãe para o feto a todo o momento

Sócrates: Não, doutor, você é que se desvia do feto para a mãe. Se não se recorda, estamos discutindo sobre o feto.

Herrod: Sócrates, veja por este lado - o motivo pelo qual é razoável considerar a mãe ao invés do feto. Suponha que eu estivesse no negócio de detetizar árvores com pesticida. Você acha que eu estaria prestando um serviço às árvores ao eliminar as formas de vidas indesejadas? Não seria tolo pensar nos parasitas e não nas árvores? Ou mesmo considerar tanto os parasitas quanto às árvores? Nosso interesse primário seria com a forma de vida mais valiosa, em um caso as árvores, no outro, a mãe.

Sócrates: Você mancha a pergunta com sua analogia. A analogia só funcionará se o feto for para a mãe o que o parasita é para a árvore: uma forma de vida menos valiosa, uma peste que deve ser eliminada. E esta é justamente a questão aqui, se o feto é uma pessoa humana como a mãe, ou uma forma inferior de vida? Devemos regressar a essa pergunta: o que é o feto? Você quer continuar seguindo o argumento como prometeu? E aplicando termos científicos tal como preferiu?

Herrod: Suponho que devo fazê-lo.

Sócrates: Muito bem. Em sua biblioteca científica aprendi que cada pessoa tem um só código genético, da mesma maneira que as impressões digitais. Isto está certo?

Herrod: Oh, Sócrates, este argumento não funcionará.

Sócrates: Que argumento? Estou somente reunindo dados, mas não estou argumentando.

Herrod: Tudo bem. Uma coisa de cada vez.

Sócrates: Precisamente. Pois bem, neste código genético encontram-se todas as características físicas em potencial, não é assim? É como um programa de computador de certa maneira? Tudo, desde a cor dos olhos, o tamanho do cérebro e a tendência a ter verrugas?

Herrod: Correto.

Sócrates: E cada pessoa tem o seu - o seu próprio e único código genético em cada uma das células do seu corpo, correto?

Herrod: Sim.

Sócrates: Este código genético completo começa no barro primitivo?

Herrod: Certamente que não.

Sócrates: É um peixe?

Herrod: Não.

Sócrates: É um gorila?

Herrod: Não.

Sócrates: Agora você pode ver que estamos aproximando do feto. Mas antes de chegar, vamos nos aproximar pela direção oposta, por assim dizer. Meu código genético está completo agora?

Herrod: Sim.

Sócrates: Está em mim quando eu durmo?

Herrod: Sim.

Sócrates: Estava em mim quando eu tinha um ano de idade?

Herrod: Sim.

Sócrates: E quando tinha um minuto de idade?

Herrod: Sim.

Sócrates: E um minuto antes de nascer?

Herrod: Sim. Ele está presente desde o momento da concepção.

Sócrates: Então, o feto tem o código genético todo o momento desde a concepção ao nascimento?

Herrod: Sim, Sócrates, mas isto não prova o que você quer provar, quer dizer, que o feto é uma pessoa.

Sócrates: Só quero seguir o argumento por onde quer que nos leve. Achei que havíamos concordado sobre isto.

Herrod: E nós concordamos. Mas isto não prova que o feto é uma pessoa.

Sócrates: Mas eu não disse que provava. Um passo de cada vez, por favor. O esperma, um minuto antes da concepção não possui o código genético, não é? Tem só metade do código e metade dos cromossomos?

Herrod: Sim. É haplóide, não diplóide.

Sócrates: E a mesma coisa vale para o óvulo?

Herrod: Sim. Deveríamos dizer espermatozoa e ovum para ser exatos.

Sócrates: E o ovo fertilizado tem o grupo completo de cromossomos e o código genético completo?

Herrod: O zigoto, sim, tem o código genético completo.

Sócrates: E esse código é o mesmo da mãe?

Herrod: Claro que não. Cada um é diferente.

Sócrates: Cada um é diferente?

Herrod: Cada código.

Sócrates: Mas um código é código de algo ou para algo, não é assim?

Herrod: Sim.

Sócrates: E o que é esse algo?

Herrod: O feto, certamente. Mas não prova que seja uma pessoa.

Sócrates: Eu sou uma pessoa, não é assim?

Herrod: É Claro.

Sócrates: E eu tenho meu próprio código genético, não é?

Herrod: Sim.

Sócrates: Esse é o mesmo código que o do feto dentro do ventre da minha mãe, que cresceu até converter-se no que sou agora?

Herrod: Sim.

Sócrates: E eu ainda sou um feto?

Herrod: Claro que não.

Sócrates: Então não podemos utilizar a palavra feto em lugar da palavra algo, quando dissemos que o código genético é o código de algo. Eu tenho o código e eu não sou um feto, portanto, nem todo que tem o código é um feto.

Herrod: Estou ficando impaciente com este jogo abstrato de palavras.

Sócrates: Um bom cientista fica impaciente com seus dados?

Herrod: Não.

Sócrates: Mas as palavras são os dados do filósofo, ou contem os dados, da mesma forma que as casas contem as pessoas. Nós não jogamos com os dados em palavras; os reunimos e os questionamos, da mesma maneira que vocês, os cientistas, reúnem e questionam seus dados empíricos. Levamos as palavras a sério, da mesma maneira que vocês levam a sério a leitura dos seus instrumentos. Agora, que palavra colocaremos no lugar de feto quando dissemos que o código genético é o código de algo?

Herrod: Um organismo. Um feto é um organismo que é uma pessoa potencial. Somos organismos que são pessoas reais.

Sócrates: E agora necessitamos somente de uma resposta mais para completar sua defesa. Por que o feto é só uma pessoa potencial e não uma pessoa real?

Herrod: Porque uma pessoa é um indivíduo, e um feto não é um indivíduo.

Sócrates: Seu silogismo é lógico, mas agora devemos provar a premissa de que o feto não é um indivíduo. Acabamos de admitir geneticamente que é um indivíduo, não é mesmo?

Herrod: Bom, então não definimos geneticamente uma pessoa.

Sócrates: Muito bom. Parece que nossa definição científica de uma pessoa será abandonada rapidamente. A que recorreremos agora?

Herrod: Ao senso comum. No que pensam as pessoas comuns quando pensam em uma pessoa? Não é na genética.

Sócrates: No que então?

Herrod: Veja, o feto é só uma parte da mãe, uma só célula em princípio, muitas células a seguir; parte do seu corpo. Não é um indivíduo porque é parte de outro indivíduo. Ah, aqui temos o argumento: outro silogismo para provar a premissa da primeira. Um feto é parte de outro indivíduo (a mãe); e nenhuma pessoa individual é parte de outra pessoa individual; portanto o feto não é uma pessoa. O que conta é a existência individual.

Sócrates: Ah! Metafísica.

Herrod: Está bem, metafísica. Mas as pessoas não são parte de outras pessoas, e o feto é uma parte da mãe. Portanto, o feto não é uma pessoa. E então, temos um argumento metafísico! Sócrates:Certamente parece sólido, tão sólido como este bloco de cimento aqui na parede. Poderia examinar seu argumento formulando uma pergunta sobre este bloco de cimento?

Herrod: O que?

Sócrates: Eu disse ...

Herrod: Eu ouvi o que disse. Simplesmente não acredito no que ouvi.

Sócrates: Mas você crê que isto é um bloco de cimento?

Herrod: Sim, mas...

Sócrates: E este bloco é uma parte da parede?

Herrod: Sim. Qual é o sentido de tudo isso?

Sócrates: Paciência, meu bom doutor. Um bom médico tem muita paciência. Por favor, permaneça comigo. Agora, esta parede... é parte do edifício do hospital?

Herrod: Sim.

Sócrates: Então podemos entender que o bloco de cimento é parte do edifício, uma vez que é parte da parede e a parede é parte do edifício.

Herrod: Sim.

Sócrates: Mais um exemplo: seu dedo é parte do seu pé, não é?

Herrod: Você tem que multiplicar os exemplos tão tediosamente?

Sócrates: Quero ter segurança em encontrar o princípio certo. Preciso explorar o caso do dedo do pé como fiz com o bloco de cimento, para estar seguro de que o princípio funciona para as coisas vivas, da mesma forma que para as inertes.

Herrod: Está bem, meu dedão é parte do meu pé.

Sócrates: E seu pé é parte do seu corpo?

Herrod: Sim.

Sócrates: E, portanto, seu dedo é parte do seu corpo.

Herrod: Sim.

Sócrates: Você enxerga o princípio que descobrimos com toda essa conversa sobre as partes?

Herrod: Creio que sim. Se A é parte de B e B é parte de C, então A deve ser parte de C.

Sócrates: Excelente. Você tem uma mente aguçada, Dr. Herrod.

Herrod: Também tenho uma boa educação. Em lógica isso se chama uma relação transitiva.

Sócrates: Sim. Agora, por favor, responda mais uma coisa: ao se desenvolver, quantos pés tem um feto?

Herrod: Se o feto se desenvolver normalmente, terá dois, certamente.

Sócrates: E quantos pés tem a mãe?

Herrod: Dois.

Sócrates: Não tem quatro?

Herrod: O que? Agora você está sendo ridículo de novo Sócrates. Por que você diria isso?

Sócrates: Os pés do feto são uma parte do feto, não é assim?

Herrod: Sim.

Sócrates: E o feto é parte da mãe, não foi isso que você disse?

Herrod: Sim.

Sócrates: Então, dado que a relação da parte ao todo é transitiva, as partes do feto são partes da mãe.

Herrod: Bom, suponho que cometemos um erro em alguma parte.

Sócrates: Creio que sim. Pense nas coisas absurdas em que embarcaríamos se continuarmos com essa linha de pensamento. Se o feto é masculino, nos forçaria a dizer que sua mãe tem um pênis.

Herrod: Obviamente nos desviamos do caminho em alguma parte.

Sócrates: Eu acho que sim. Vamos revisar o argumento que nos trouxe até aqui, para averiguar onde nos desviamos. Será que nos equivocamos ao estar de acordo com o princípio de que se A é parte de B e B é parte de C, então A deve ser parte de C?

Herrod: Não, este não foi um equívoco.

Sócrates: E estávamos errados quando dissemos que os pés e o pênis eram partes do feto?

Herrod: Não.

Sócrates: Então há somente um lugar onde poderíamos ter nos desviado do caminho. A única outra premissa era que o feto é uma parte da mãe.

Herrod: Mas se negarmos isso, o que resta para evitar que o trem dos opositores nos atropele?

Sócrates: Nada mais que a irracionalidade, doutor. Parece que o argumento é uma crença que exige uma fé cega.

Herrod: Espere um minuto. Vamos retroceder e reconsiderar nossas premissas.

Sócrates: Há alguns minutos eu queria retroceder e você queria encerrar!

Herrod: Me apressei demais. Acreditei que sabia o que não sabia.

Sócrates: Estou francamente impressionado. Você foi visitado pelo Oráculo.

Herrod: Ou por quem foi visitado pelo Oráculo. Sua ignorância aprendida parece ser uma enfermidade contagiosa.

Sócrates: Então você agora sabe quem eu sou realmente.

Herrod: Em todo caso, você interpreta muito bem o papel.

Sócrates: Não é difícil interpretar o papel de si mesmo.

Herrod: Eu não acredito em reencarnação.

Sócrates: Nem eu. Quando sugeri a idéia a Platão ele me levou a sério demais. Estava pensando somente como uma “história provável”, como as histórias dos deuses.

Herrod: Então de onde você veio?

Sócrates: Temo que não poderia explicar muito bem. A reencarnação não é uma idéia de todo ruim. Mas a verdade sobre o lugar de onde venho é muito maior, e tão surpreendente, e tão difícil por em palavras sem esticá-las além dos limites da sua compreensão, que temo que não responderei a sua pergunta. Por favor, só me aceite como sou e continuemos com os dois assuntos mais importantes: meu trabalho aqui e o seu.

Herrod: Eu simplesmente não posso evitar me perguntar quem é você realmente. Quando se referiu ao Oráculo há pouco, se referia ao Oráculo de Apolo em Delfos, não é? Não estava citando, mas recordando!

Sócrates: Lembrando?

Herrod: Recordando o famoso incidente, quando o Oráculo lhe disse que era o homem mais sábio do mundo, porque sabia que nada sabia.

Sócrates: Sim, mas sua história está equivocada de três maneiras. Primeiro, foi meu amigo Chaerephon, não eu, quem visitou o Oráculo. Segundo, a mensagem não foi que eu era mais sábio que nenhuma pessoa, só que ninguém era mais sábio que eu. Terceiro, a razão da minha sabedoria não foi especificada pelo Oráculo. Eu deduzi a razão: não era que eu soubesse que não teria conhecimento, mas que sabia que não tinha sabedoria, algo mais raro e endeusado. De fato, só os deuses a tem, enquanto nós a buscamos. É por isso que nos tornamos filósofos: amantes e amigos da sabedoria.

Herrod: Certamente você interpreta o papel muito bem.

Sócrates: Você também.

Herrod: O que? Eu não estou interpretando nenhum papel. Realmente sou o doutor Herrod.

Sócrates: Você realmente é Herrod, mas será que é um médico de verdade?

Herrod: Que quer dizer com isso?

Sócrates: Ser médico - acaso esta não é sua função, sua profissão?

Herrod: Sim.

Sócrates: E não concordamos que havia uma diferença entre ser algo e funcionar como algo?

Herrod: Sim.

Sócrates: Você seguiria sendo Erro mesmo se fosse advogado, não é assim? De fato, você ainda é Erro ainda que esteja dormindo e não funciona de nenhuma maneira específica, quase como o feto, não poderíamos dizer isso?

Herrod: Oh, isso.

Sócrates: Sim, isso. Não estamos aqui para nos regalar em palavras amáveis nem sobre nós mesmos nem sobre o outro, mas para examinar essas palavras para tentar encontrar a verdade sobre o que você faz.

Herrod: Já tentamos por uma hora e falhamos. Quero ir pra casa.

Sócrates: Por que diz que falhamos?

Herrod: Estivemos pescando no oceano das palavras com a vara da lógica, e não pescamos nada.

Sócrates: Tenho impressão que nossa expedição de pesca teve um resultado bastante diferente: fisgamos um peixe com nossa vara, mas não foi o peixe que queríamos, então tentamos devolvê-lo ao mar. Mas ainda está conosco. Parece ser um tubarão, tentando nos devorar.

Herrod: E o que podemos fazer?

Sócrates: Se servimos ao mestre comum, devemos fazer algo com este tubarão. Não podemos simplesmente fingir que não está aqui. Temos que atira-lo de volta ao oceano ou ser comidos vivos.

Herrod: São essas as únicas possibilidades?

Sócrates: Se somos racionais, sim. Ou respondemos a objeção ou entregamos os pontos.

Herrod: Você serve a um amo muito severo.

Sócrates: E você?

Herrod: (suspiro)

Sócrates: Por que duvida?

Herrod: Parece que devo escolher, não só com respeito a esta discussão, e não só referente ao aborto, mas primeiramente referente ao mestre comum.

Sócrates: Sim, você é sábio ao perceber essa ordem de prioridades e também o fato de que o mestre comum deve ser livremente escolhido. Ele não vai entrar pela força nas nossas vidas. É como a luz, amável. Se escolhemos fechar nossas pálpebras, ele não brilhará através delas contra nossa vontade.

Herrod: Se for honesto não posso fazer menos que você. Continuemos seguindo este severo mestre.

Sócrates: Esplêndido. Sua fé é boa para nosso raciocínio.

Herrod: Fé? Eu não tenho fé.

Sócrates: Ah, mas é claro que tem, se escolhe seguir ao mestre. Mas passemos por cima disto agora. Como pensa em devolver o pescado?

Herrod: Suponho que devemos voltar atrás.

Sócrates: Em geral esta é a melhor maneira de avançar.

Herrod: Enfrentemos este tubarão face-a-face. É como se tivesse duas fileiras de dentes; juntos me devoram e a meu trabalho. As duas fileiras de dentes são duas premissas do argumento. A primeira proposição de que matar a um ser humano inocente é assassinato, e a segunda é que o aborto é matar a um ser humano inocente, que o feto é uma pessoa. A conclusão se desprende das duas premissas juntas. Agora, se pudéssemos eliminar qualquer uma das duas fileiras de dentes, não seríamos devorados. Os dentes da proposição restante não teriam o que mastigar.

Sócrates: uma imagem apta, certamente, e uma análise clara do argumento. O médico parece ter se convertido em um dentista. Que fileira de dentes deseja eliminar? Não é nenhum dente do siso, espero.

Herrod: Provemos as duas fileiras uma a uma. Iniciemos com a primeira premissa. Devemos admitir que qualquer matança de seres humanos inocentes é assassinato?

Sócrates: Você poderia pensar em alguma exceção para esse princípio?

Herrod: Permita-me pensar por um minuto...

Sócrates: Uma excelente ideia!

Herrod: Não seja sarcástico.

Sócrates: Não estava sendo.

Herrod: Que tal uma matança não intencional de civis em um bombardeio necessário a fim de destruir instalações militares inimigas? Matar sem intenção não é assassinato. Ah, mas vejo que isso não nos ajudará. Obviamente, o aborto não mata o feto não-intencionalmente.

Sócrates: Parece estar seguindo bem ao mestre comum.

Herrod: Por que? Parece que estou tomando a sua posição?

Sócrates: Não, porque está sendo racional. Tenho que recordá-lo de novo? Eu sirvo somente ao mestre comum, não a uma posição determinada. Começo somente com dúvidas e espero terminar com algumas certezas. Você começou com certezas e agora está seguindo com dúvidas. Ambas podem ser maneiras de servir ao mestre comum.

Herrod: De alguma maneira não me sinto cômodo com tal serviço.

Sócrates: Eu não disse que seria confortável.

Herrod: Afligir ao cômodo e confortar ao aflito, não é?

Sócrates: Um dito sábio. Ao começar com o primeiro, podemos ter esperança em chegar ao segundo. A aflição da mente é o único caminho que conheço para a comodidade do conhecimento.

Herrod: Suponho que devemos regressar a minha aflição, quer dizer, o argumento. Parece que temos que tentar derrubar a outra fileira de dentes do tubarão, a segunda premissa. Se pudéssemos sustentar que a pessoa começa em algum momento posterior a concepção, então poderíamos justificar ao menos alguns abortos. Vejamos então... ah, é verdade! Existe um argumento, mas é muito simplista... Ouça, datamos a existência desde o nascimento, e não desde a concepção. Todos sabem disso. Uma pessoa tem cinqüenta anos de idade no seu aniversário, não cinqüenta anos e nove meses, que é o que teria se começasse a contar sua existência desde o momento da concepção. Sócrates:De fato, algumas pessoas contam a partir do momento da concepção. Os chineses não fazem assim?

Herrod: Talvez essa seja a exceção que prova a regra geral.

Sócrates: Penso que seja impossível compreender isso. Como pode uma exceção provar uma regra? Uma exceção desmente uma regra geral.

Herrod: Por que tem que questionar todos os clichês? Não importa. De qualquer maneira, é só um costume social, um artifício. Os chineses não fazem um feto humano somente ao datá-lo a partir do momento da concepção.

Sócrates: Certamente não. E outros povos tampouco fazem que o feto seja humano ao datá-lo desde o momento do seu nascimento, não é?

Herrod: Bom, não, mas tudo parece ser relativo.

Sócrates: O que é o todo que parece ser relativo a que? Este isto e este todo parece ser relativo, está certo: relativo ao que se deseja inserir dentro destas vagas categorias. Seguramente não quer dizer que tudo, sem exceção, é relativo?

Herrod: E você sabe o que quero dizer? É bem possível que queira dizer justamente isto.

Sócrates: Não acredito nisto. Penso que você sabe muito de lógica e muita ciência para cometer um equívoco tão tolo.

Herrod: Que lógica? Que ciência?

Sócrates: Muita lógica porque você sabe que uma auto-contradição não pode ser certa, e sua idéia do relativismo absoluto é justamente isto: uma auto-contradição. E muita ciência porque você sabe que há coisas que não são relativas, ainda que possam ser relativas entre si: coisas como pássaros e pedras, átimos e gravidade, a massa e o número.

Herrod: Mas isso são fatos concretos. Datar o início de uma pessoa humana não é um fato concreto, mas uma questão de opinião.

Sócrates: Datar certamente não é um fato concreto, porque depende de nós. Mas aquilo a que se põe data é algo muito diferente não é? Dizer cinqüenta anos de idade desde o momento do nascimento ou cinqüenta anos e nove meses de idade desde o momento da concepção é um artifício. Mas o fato concreto é que você nasceu há cinqüenta anos e foi concebido a cinqüenta anos e nove meses. Existe algo real para que nossas medidas meçam.

Herrod: É Claro. Mas a qualidade de humano não é um desses fatos concretos que podem ser medidos.

Sócrates: Parece que não, pelo menos para você. Exploremos este “parece” com o objetivo de ver se prova ser um “é”, tal como você afirma. Você continua comigo no discipulado do argumento?

Herrod: Suponho que sim.

Sócrates: Não soa como um discípulo entusiasmado.

Herrod: Estou cansado. Preciso de outra xícara de café.

Sócrates: Fico maravilhado ao ver como vocês confiam no café para cruzar águas turbulentas!

Herrod: Aceita uma xícara?

Sócrates: Não, prefiro submergir nas águas!

Herrod: Isso eu já percebi.

Sócrates: Vamos prosseguir com nossa investigação. Quais são os fatos concretos temos que nos ajudam a decidir o que é o feto?

Herrod: Creio que ambos conhecemos os fatos. Simplesmente os interpretamos de maneiras diferentes. Essa é uma questão de opiniões que não pode ser resolvida pelos fatos em si.

Sócrates: Uma boa interpretação é fiel aos fatos?

Herrod: Sim.

Sócrates: E uma má-interpretação não é?

Herrod: Sim.

Sócrates: Então ponhamos a prova estas as interpretações dos fatos confrontando com os próprios fatos.

Herrod: Tudo bem. Vejamos as diferenças entre o zigoto e a pessoa adulta. Aqueles que qualificam o aborto como assassinato dizem que uma pessoa começa no momento da concepção - dizem que o zigoto é uma pessoa. Para afirmar isto, dizem que há uma maior diferença entre o pré-zigoto e o zigoto do que entre o zigoto e a pessoa adulta, considerando que a primeira diferença, dizem, é uma diferença de classe, entre a não-pessoa e a pessoa, ainda que a segunda é só uma diferença de grau, entre duas etapas de crescimento da pessoa. Esta afirmação é que podemos chamar de absurda. Seguramente você pode ver a diferença entre um zigoto e você mesmo: uma diferença muito maior que aquela entre um pré-zigoto e um zigoto.

Sócrates: Não consigo ver nada. Deixe-me reavaliar. Vejo uma diferença de tamanho, mas a questão é se posso ver uma diferença de classe através da razão. Mas a questão é se consigo ver uma diferença no tipo com a minha razão.

Herrod: Como você pode determinar uma coisa assim tão abstrata?

Sócrates: Vamos começar com o que temos certeza. Quais são as diferenças entre um bebê e um adulto?

Herrod: Para que perder tempo com esta pergunta? Eu perguntei sobre as diferenças entre um zigoto e um adulto.

Sócrates: Paciência, por favor, Doutor. Logo chegaremos lá.

Herrod: Mas todos conhecem a diferença entre um bebê e um adulto. Por que é necessário adentrar nisto se é um assunto que todos sabemos?

Sócrates: Não seria possível esquecer o que sabemos?

Herrod: Sim.

Sócrates: Então tenhamos cuidado de não esquecer o que sabemos. Devemos correr o menor número de riscos possível e perder poucos minutos a fim de evitar o risco maior, o de esquecer um fato simples e importante.

Herrod: Você é mesmo muito chato, sabia?

Sócrates: Me desculpe. É somente minha maneira, minha única maneira de pensar. As mentes mais rápidas que a minha podem submergir na verdade como Tarzan através das árvores. (Sim, também as histórias de Tarzan) Mas minha mente só pode arrastar-se como um pequeno molusco, centímetro por centímetro, assegurando-se de cada passo do caminho.

Herrod: Mas uma vez que sabe algo, não importa quão lentamente o descubra, então já o sabe.

Sócrates: Talvez minha mente seja mais débil e frívola do que qualquer outra mente na terra, mas pareço ser extremamente esquecido. Penso que até as verdades mais evidentes se esquecem com facilidade se não me esforçar para mantê-las presentes. Minha mente parece ser como uma grande gaiola em que as aves parecem estar prontas para fugir a qualquer momento em que abaixar a guarda.

Herrod: Sócrates, você é uma pessoa muito estranha.

Sócrates: Então, você poderia fazer a gentileza de dizer à essa estranha pessoa quais são as diferenças entre um bebê e um adulto que todos conhecem?

Herrod: Tudo bem. Vejamos... por um lado, os bebês são obviamente menores.

Sócrates: Essa é uma. O quê mais?

Herrod: Estão muito menos desenvolvidos em todos seus sistemas corporais.

Sócrates: Agora são duas. Algo mais?

Herrod: São mais dependentes das suas mães para sobreviver.

Sócrates: Três. Há outras?

Herrod: Hummmm.... isto parece incluir quase tudo, a não ser que queiramos tomar a mobilidade como uma diferença separada. O bebê não tem capacidade de se deslocar, a não ser que seja carregado, enquanto o adulto vai de um lado a outro voluntariamente.

Sócrates: Muito bem, esta é a quarta. Há alguma outra?

Herrod: Parecem ser todas.

Sócrates: Agora, só mais uma pergunta antes de retornar ao feto, se puder estender sua paciência um pouco mais. Seria alguma dessas diferenças que acabamos de mencionar um motivo para que se considerasse que matar é ou não assassinato? Por exemplo: podemos dizer que é assassinato matar uma pessoa adulta mas não um pequeno? Ou é pior matar uma pessoa adulta?

Herrod: Eu não quero dizer isso. Mas quero dizer que o grau de desenvolvimento poderia contar.

Sócrates: Você diria que não é assassinato, ou que é um assassinato menos sério, matar um pré-adolescente, cujo sistema reprodutivo não se encontra totalmente desenvolvido, que matar alguém ao final da adolescência cujo sistema reprodutivo se encontra completo?

Herrod: Claro que não. Sem dúvida, me parece pior matar a um adulto que um bebê com dez minutos de vida. O grau de desenvolvimento novamente parece ser relevante.

Sócrates: vejamos então se esse “parece” é um “é”. Se o grau de desenvolvimento implica uma diferença moral, então uma grade diferença no grau de desenvolvimento implicará uma grande diferença moral, e uma pequena diferença no desenvolvimento implicará uma pequena diferença moral. É esse o resultado lógico?

Herrod: Sim.

Sócrates: Então, se é muito pior matar a um adulto que um bebê, seria menos pior matar um jovem no final da sua adolescência que um pré-adolescente.

Herrod: Isto certamente parece estar errado.

Sócrates: E por acaso não seria também algo terrível molestar ou agredir ou matar crianças pequenas tanto quanto crianças maiores?

Herrod: Não, não... Não só terrível como até mesmo pior. Os pequenos são menos capazes de se defender. Todos detestam quem molesta crianças. Nós devemos ter nos desviado do caminho em algum lugar com estas estranhas conversas.

Sócrates: Com nosso princípio, creio. As conseqüências absurdas resultam necessariamente do seu falso princípio.

Herrod: Que falso princípio?

Sócrates: Que o tamanho ou grau de desenvolvimento da vítima faz diferença na moralidade do ato de matar. Você pode se retratar do princípio agora?

Herrod: Suponho que devo fazê-lo.

Sócrates: Parece duvidar. Você não tem certeza disso?

Herrod: Creio que sei quais são as conseqüências desta retratação.

Sócrates: Uma coisa de cada vez, por favor. Estamos remando em um bote na correnteza, e você está olhando além da próxima curva do rio em lugar de assegurar-se de que está remando na direção certa.

Herrod: Isso é porque posso ver para onde a corrente está levando o meu bote.

Sócrates: E você gostaria de deixar seu bote na margem e abandonar o rio por completo.

Herrod: Sim.

Sócrates: Mas o rio é o argumento.

Herrod: Sim.

Sócrates: E nós concordamos em seguir o argumento onde quer que isso nos leve, não foi?

Herrod: Sim.

Herrod: Sim.

Sócrates: E o argumento nos leva a esta pergunta: alguma das quatro diferenças entre o feto e o adulto são moralmente relevantes? Por exemplo, é menos maligno matar uma vítima dependente ou imóvel que outra independente e móvel, um paralítico, por exemplo?

Herrod: Claro que não. Já sei onde nos o argumento nos levará agora, Sócrates. Você dirá que o feto difere do bebê somente por estas quatro coisas: é menor, menos desenvolvido, mais dependente e menos móvel. E, como nenhum destes fatores é moralmente relevante, depreende-se que é assassinato matar tanto um feto quanto um bebê.

Sócrates: Essa é uma maneira muito forte e sensata de interpretar o argumento.

Herrod: Seu argumento, Sócrates. Eu simplesmente me antecipei a você. Toda essa conversa sobre o argumento, possivelmente seja somente uma cortina de fumaça. Me sinto manipulado.

Sócrates: Posso assegurar que o último e mais forte argumento foi seu e não meu.

Herrod: Não foi meu argumento, Sócrates. Eu só o formulei.

Sócrates: Eu mesmo não poderia dizer melhor. “Meus” argumentos também não são meus; sou somente quem os formula. É o rio, não o meu remo, que leva seu bote. Meu remo só impulsiona o bote para longe das rochas da autocontradição; é a correnteza que dá a direção. Ou, para utilizar outra imagem, os argumentos são como caminhos através de um bosque; os exploramos, ou fazemos um mapa, mas não criamos os caminhos. Os caminhos que transita a mente são tão objetivos quanto os caminhos que recorre o corpo, e levam a lugares mentais tão diferentes quanto os distintos lugares físicos.

Herrod: Não posso aceitar esse conceito simplista de verdade objetiva, Sócrates. Mas vamos guardar esse tema para outro dia, talvez quando encontre um filósofo que discuta com você. Sou somente um pobre médico e cientista, não sou páreo para um filósofo em assuntos abstratos.

Sócrates: Mas sobre o assunto que você sabe, encontramos uma diferença moralmente relevante entre o feto e o bebê, não é?

Herrod: Ainda não. Exceto porque o feto se encontra dentro da mãe e o bebê fora.

Sócrates: Mas concordamos em que a mobilidade não era um fator moralmente relevante, não é? (Céus, como me envolvi com o linguajar técnico!). E você se recorda do que sucedeu quando exploramos o argumento de que o feto era “parte da mãe”, não é?

Herrod: Sim. Foi mesmo uma grande cachoeira, com rochas no fundo. Recorreremos a que, então? Espere! Talvez o mesmo bote que nos levou rio abaixo nos leve rio acima; ou melhor, o mesmo fato que nos levou contra a corrente, nos leve a favor; talvez o fato que trabalhou contra mim possa trabalhar a meu favor. Quer dizer, o fato é que não existe uma linha concreta. É uma questão de graus, converter-se em uma pessoa é um processo gradual. Oh não, não vai funcionar... Já refutamos esse argumento. Quer dizer que é pior matar um jovem de dezessete anos que um menino de dez anos de idade... Ou existe uma linha bem delimitada, e então o aborto é assassinato ao cruzar esta linha, ou não existe tal linha e então não é tão mau matar um menino de dez anos de idade como é matar um de dezessete anos... Oh céus! Parece que meu bote foi pego por um redemoinho. Tenho que encontrar uma brecha. Tem que ser o momento do nascimento. Mas já o revisamos; nenhuma das quatro diferenças conta, e o argumento que diz que é “parte da mãe” mostrou-se ser absurdo. Hummmmm... suponha que nos comprometemos um pouco e estendemos o início da vida até um tempo dentro do ventre materno. Vamos tentar a viabilidade. O que tem de mau em dizer que para ser uma pessoa, é preciso ser independentemente viável fora da mãe?

Sócrates: Vamos examinar isso, então.

Herrod: Não tenho muita esperança de escapar do redemoinho.

Sócrates: Suas voltas no redemoinho podem não ser tão inúteis quando você pensa.

Herrod: Mas estou rodeado de dificuldades!

Sócrates: Alguma vez lhe prometi que você não teria dificuldades? As dificuldades são o anzol do mestre. Mas exploremos a viabilidade. Isso significa a habilidade de viver por sua própria conta, não é?

Herrod: Sim.

Sócrates: Em outras palavras, independência.

Herrod: Sim.

Sócrates: Consegue ver alguns problemas neste raciocínio?

Herrod: Está bem, quais são? Por favor, seja rápido, meu café acabou e eu também!

Sócrates: Por um lado, já rechaçamos o grau de dependência, uma das quatro diferenças que encontramos entre o feto e o bebê, como uma diferença entre matar e assassinar. Dois, a identidade, a individualidade do feto não depende da mãe. Tem seu próprio código genético. Três, sua dependência da mãe para sua alimentação continua até muito depois do nascimento. Se a dependência nos faz não-pessoas, então crianças pequenas não são pessoas e matá-las não é assassinato. Quatro, os enfermos e os anciãos também são dependentes, e por acaso não são pessoas? Cinco, todos nós sempre somos dependentes: uns dos outros, da natureza... Seis...

Herrod: Já chega! Esqueça a dependência. Não vamos definir viabilidade simplesmente como dependência. Isso é muito vago. Viabilidade é a habilidade de viver fora do ventre materno. Se um feto pode nascer e sobreviver, que seja uma pessoa. Se não pode, não.

Sócrates: Bom, então devemos investigar esta nova definição.

Herrod: Alguma vez deixa as coisas em paz?

Sócrates: Claro que não. Por que eu deveria?

Herrod: Você nunca descansa?

Sócrates: Precisamos descansar do trabalho. Isso não é trabalho.

Herrod: Para mim é.

Sócrates: Então, vejamos se este último trabalho seu deve ou não ser abortado. Por favor, diga-me: a qualidade de pessoa depende do tempo e do lugar?

Herrod: O que você quer dizer? Socrates: Deixo de ser uma pessoa quando saio de um lugar e entro no outro?

Herrod: Claro que não.

Sócrates: E as pessoas que viveram a 2.400 anos atrás são menos pessoas que as do presente?

Herrod: Claro que não. Onde você quer chegar?

Sócrates: Então, a qualidade de pessoa não depende do tempo nem do lugar?

Herrod: Não, neste sentido não.

Sócrates: Agora diga-me outra coisa: por acaso não é verdade que um bebê que pode viver aparte da sua mãe só com a ajuda de uma incubadora não sobreviveria se não existisse incubadora?

Herrod: É Claro.

Sócrates: E há dois mil e quatrocentos anos atrás não havia incubadoras. Mesmo agora não existe em todos os lugares.

Herrod: Não.

Sócrates: Então, um bebê que é viável na cidade poderia não ser viável na selva, e um bebê que atualmente é viável, não seria viável há dois mil e quatrocentos anos atrás.

Herrod: Pela definição de viabilidade que utilizamos, está certo.

Sócrates: Bom, então, se a qualidade de pessoa não depende nem do tempo nem do lugar, e a viabilidade depende do tempo ou do lugar, então a viabilidade não pode ser marca universal da qualidade de pessoa.

Herrod: Ah, isso é o que se deduz, não é? Se aceitarmos ambas as premissas.

Sócrates: Você pode refutar alguma delas?

Herrod: Não, mas Sócrates, isso é escrupuloso demais. Qualquer que seja o momento em que comece a ser uma pessoa não pode ser no momento em que ocorre a fertilização. Observe somente o zigoto; uma só célula, sem cérebro, sem sistema nervoso, sem consciência, sem coração, sem rosto. Não vê o absurdo de chamar isso de ser humano?

Sócrates: Por que não se parece em nada com um ser humano?

Herrod: É Claro.

Sócrates: Mas nossa pergunta não é como se vê o feto, mas o que ele é.

Herrod: Não estou convencido de que haja uma maneira de saber o que é uma coisa, exceto através da observação do que se vê.

Sócrates: Quer dizer que a aparência e a realidade são a mesma coisa? Se for assim, por que é preciso questionar as aparências para encontrar a realidade? Este não poderia ser um caso em que as aparências enganam?

Herrod: Mas neste caso a realidade parece ser transparente. Observe o zigoto, por acaso aparenta ser uma pessoa?

Sócrates: De soslaio, certamente; mas o sentimento não é olhar de relance. O sentimento não é parte do material de trabalho do mestre, não é?

Herrod: Creio que não podemos descartar os sentimentos completamente. O sentimento também é parte da nossa humanidade.

Sócrates: Sim, mas não é material do mestre comum, não é? Não pode ver e, portanto, não pode guiar-nos. Tem coração, mas não tem olhos.

Herrod: Bom, eu tenho olhos. Permita-me que diga o que vejo.

Sócrates: Muito bem, ainda que espero que veja com os olhos de raios X da mente, e não somente com os olhos externos dos sentidos.

Herrod: Mas temos que começar com os sentidos, de qualquer maneira. O que vemos no zigoto? Nenhuma diferenciação celular, funções ou sistemas; não há órgãos, não há consciência.

Sócrates: Verdade. Certamente não é um ser humano adulto. Mas você não está confundindo a pergunta de “se é um ser humano” para “quão desenvolvido está esse ser humano”? Há alguns momentos você estava confundindo se poderia ser visto ou não como um ser humano. São três perguntas distintas: o que é? Qual é sua aparência? E que etapa do desenvolvimento se encontra? Se não é um ser humano, o que é? Um gorila? Um peixe?

Herrod: Estou disposto a admitir que é um ser humano potencial, não um gorila ou um peixe potencial, mas toda sua realidade permanece sem realizar-se. Permanece pendente para o futuro.

Sócrates: Nem toda a realidade, ou não seria nada. Para averiguar o que na verdade é o zigoto, observemos mais acerca desta útil distinção que você fez. O assunto da realização do potencial inato parece pertencer a própria natureza das coisas vivas, não é?

Herrod: Sim, de fato.

Sócrates: De modo que poderíamos dizer que o crescimento é um tipo de expansão de um potencial que já se encontra presente?

Herrod: Sim.

Sócrates: E por acaso o zigoto não é simplesmente a primeira etapa desta expansão? Tem diante de si praticamente toda sua expansão ou crescimento, assim como o resto de nós temos parte do desenvolvimento já passado e parte por vir, e no momento da morte todo desenvolvimento já terá passado e já não restará nada por vir, pelo menos nesta terra.

Herrod: Sim, mas estamos novamente no processo gradual: nunca somos completamente reais, plenamente humanos. É uma questão de graduação.

Sócrates: O que é uma questão de graduação? A maturidade, não a essência. Uma criança é potencialmente um adulto, mas não potencialmente humano, não é? Seu potencial não é converter-se em uma espécie ou essência diferente, mas é um potencial para expandir a essência. A essência já está ali, guiando a expansão.

Herrod: Parece ser sim.

Sócrates: E isto parece ser correto mesmo para o zigoto. Por que motivo todos os zigotos se desenvolveriam até alcançar a forma humana, e não a forma de um gorila ou outra coisa?

Herrod: Não há nenhum mistério nisto, Sócrates. Não é necessário introduzir essências invisíveis e potencialidades. Simplesmente se trata de programação genética.

Sócrates: Neste caso, por acaso não retornamos para onde estávamos há um momento atrás, com o fato único no qual se forma um indivíduo geneticamente novo, no instante da concepção?

Herrod: Mas você não pode definir um ser humano simplesmente pela genética.

Sócrates: Se não se Poe fazer através dos princípios filosóficos tais como a essência ou a espécie, e tampouco através dos princípios científicos tais como a genética, então através do que definimos um ser humano?

Herrod: Talvez seja impossível definir um ser humano. Ou melhor todo assunto sobre o início da vida humana é um assunto teológico, não científico.

Sócrates: Você ouviu isso, Galileu?

Herrod: O que? Com quem você está falando?

Sócrates: Oh, é só um velho amigo meu que conheci noutro tempo e noutro lugar, um com um destino e sentido de ironia iguais aos meus. Veja, observe comigo neste momento, o ato da concepção, ou fertilização, para nos assegurar dos fatos sobre os quais desenvolveremos todas as conclusões que podemos alcançar.

Herrod: Ok, tudo bem.

Sócrates: Boas notícias, Galileu; ele vai olhar através do seu telescópio!

Herrod: O que?

Sócrates: Lamento, esqueci que você não pode vê-lo. Voltemos aos nossos dados. Por favor, diga-me, o que sucede ao zigoto imediatamente após a fertilização?

Herrod: Um certo tipo de explosão ou replicação das células.

Sócrates: E que tipo de princípio conduz esta replicação? De onde provêm estes bilhões de complexos desenhos?

Herrod: Agora vai tentar introduzir Deus no assunto?

Sócrates: Bem, eu não sei; Eu não tinha planejado. Você quer?

Herrod: Claro que não.

Sócrates: Ah, pensei que quisesse.

Herrod: Por quê?

Sócrates: Porque insiste que a questão do momento do início da vida era um assunto teológico. Mas diga-me, estes bits de informação que guiam o desenvolvimento das células, são o código genético da mãe?

Herrod: Não.

Sócrates: Do pai?

Herrod: Não.

Sócrates: Então de quem são, senão de um novo indivíduo da espécie homo sapiens?

Herrod: Eu não sei.

Sócrates: Vamos, vamos, Doutor, você sabe mais ciência do que isto.

Herrod: Esqueça, me dou por vencido, fracassei.

Sócrates: Estamos tentando não esquecer, lembra? E creio que em lugar de fracassar, você teve êxito ao dar os primeiros passos. Mas poderia observar por um minuto a mais este instante da concepção, este tempo do ponto de vista filosófico, s[ó para completar e unir a filosofia à ciência?

Herrod: Eu não me importo.

Sócrates: Parece que está cansado. Farei que seja tão rápido quanto possa. Diga-me porque supõe que se chama concepção?

Herrod: Eu não sei. Diga-me se realmente quer encurtar a conversa.

Sócrates: Eu direi, mas também espero sua aprovação para continuar avançando. Não é certo que a concepção biológica é muito similar a concepção mental, por isso uma é chamada com o mesmo nome da outra? Estou pensando especialmente no repentino momento do entendimento. É precedido por passos preparatórios até o entendimento, e também seguido por outros passos; mas o momento do primeiro entendimento é algo novo e repentino, o momento no que se diz: “Ahá!!” Não parece haver um agradável paralelismo no mundo da mente com o que se passa no mundo do ventre materno? Uma coisa realmente nova, um ponto radical, um momento de mudança no qual podemos razoavelmente traçar uma linha e dizer que algo novo acaba de começar?

Herrod: Se você quer assim. Grrrr! Já deveria saber que você é do grupo deles.

Sócrates: Um deles? Dos humanos, você quer dizer? Certamente eu também comecei sendo um zigoto. Você não? E, como disse, deveria saber desde o início.

Herrod: Você está brincando comigo. Isto não é o que eu quis dizer, você sabe.

Sócrates: Então o que foi que quis dizer?

Herrod: Pensei que estava do meu lado. Mas por eu não ter encontrado uma boa defesa, se tornou meu acusador.

Sócrates: E como eu fiz isso?

Herrod: Ao plantar todas essas dificuldades. Por que vê dificuldades em todas as partes? Você fareja as dificuldades, como um cão fareja a caça, sem nenhuma delicadeza. Creio que você é uma pessoa que só quer causar problemas.

Sócrates: Oh céus, esta acusação soa terrivelmente familiar. Talvez possa explicar-lhe meu método, ainda não pude explica-lo aos meus acusadores há muitos séculos atrás. Veja, quando caça a um cervo ou um coelho, você os procura em uma clareira do bosque ou entre os arbustos?

Herrod: Nos arbustos, claro.

Sócrates: Por quê?

Herrod: Porque ali é onde o animal provavelmente estará escondido.

Sócrates: Precisamente. Eu não caço cervos ou coelhos, mas uma presa muito mais valiosa e mais furtiva: a verdade. E agora a pouco encontrei minha presa escondendo-se em um emaranhado de dificuldades. Você poderia explorar os arbustos comigo um pouco mais?

Herrod: Não, está ficando tarde e estou faminto.

Sócrates: Eu também tenho fome, mas de um alimento diferente, creio. Por acaso não tem mais nada a dizer em sua defesa? Você se dá conta da seriedade da acusação de que você não é nada menos que um assassino? E está consciente da força dos testemunhos contra você, o testemunho do mestre comum e seu instrumento, o argumento?

Herrod: Tenho uma última coisa a dizer, Sócrates. Dizem que um bom ataque é a melhor defesa. Bom, esta é minha última e melhor defesa. Você me instigou em várias ocasiões por minhas dúvidas e mudanças de opinião quando me dei conta de que não sabia. Mas por acaso não deveria culpar também meus acusadores por serem dogmáticos já que eles asseguram que tem o saber?

Sócrates: Posso lembrar de novo ...

Herrod: Eu sei, eles não estão aqui, mas a acusação está aqui. Nos ocupamos dela toda a tarde, como a flecha do arco de algum arqueiro ausente, de algum oponente invisível.

Sócrates: Muito bem, façamos a flecha tão visível quanto nos seja possível, ainda que o arqueiro esteja ausente.

Herrod: Eles afirmam que sabem o que realmente não sabem: que o feto é uma pessoa humana desde o momento da concepção.

Sócrates: E você assegura saber que não é?

Herrod: Não, esta é minha vantagem e sabedoria. Eu não asseguro saber aquilo que não sei. Eles sim. São dogmáticos. Os teólogos, filósofos e cientistas tem discutido anos a respeito sem chegarem a um acordo. É simples dogmatismo que alguém esteja seguro sobre um assunto tão controverso. Tomás de Aquino ensinou que o feto se tornava humano no terceiro mês de gravidez. Ele pensava que a alma era “inoculada” no corpo só então. Assim, ele dizia que o aborto não era assassinato até o terceiro mês.

Sócrates: Tomás de Aquino não sabia sobre a genética, não é?

Herrod: Não, ele viveu na Idade das Trevas.

Sócrates: A era das catedrais góticas, dos manuscritos iluminados, Dante, Marco Polo, as universidades, a poesia romântica, é disso que você quer dizer?

Herrod: Grrrrrr. Cientificamente foi uma era de ignorância.

Sócrates: Se Aquino tivesse conhecimento da genética que nós conhecemos, crê que ele teria permitido o aborto antes do terceiro mês?

Herrod: Talvez não. Mas eu o mencionei só para demonstrar que o tema é controverso. Simplesmente não sabemos quando o feto se transforma em uma pessoa humana. Qualquer que assegure sabê-lo é um tolo, porque afirma saber o que não sabe. Seguramente você, entre todos os homens, deveria suspeitar de tal tolice, Sócrates. Acaso você não classificou a todos em duas classes, a dos sábios, que sabem que são tolos, e a dos tolos, que crêem que são sábios?

Sócrates: Creio que nunca disse algo tão sábio quanto isso, e certamente tenho que aplaudir qualquer que tenha dito o mesmo.

Herrod: Bom, então aplauda, porque acabo de dizê-lo.

Sócrates: Com prazer. (Aplausos)

Herrod: Pare , está chamando a atenção, e você sabe, pode ser muito embaraçoso.

Sócrates: Então, por que suporta minha presença?

Herrod: Francamente, pensei que havia encontrado uma alma gêmea. Você também é médico, um médico da enfermidade de assegurar saber o que não sabe, está certo?

Sócrates: Sim, intento tratar esta enfermidade cada vez que encontro com ela. A única questão aqui é: onde a encontramos?

Herrod: Oh, eu sei onde encontrar esta enfermidade, lhe asseguro. Meus opositores estão sofridos com ela.

Sócrates: Você sabe onde encontrar essa enfermidade, não é?

Herrod: Creio que está me fazendo tropeçar nas minhas próprias palavras. Não está bastante claro que eles asseguram saber mais do que eu? Dizem que sabem que o feto é uma pessoa, eu não. Então eles são tolos por assegurar saber, e eu sou sábio porque não asseguro saber. Isso não está claro?

Sócrates: Veremos. Vamos dar uma olhada.

Herrod: E o que dá pra checar sobre esta afirmação?

Sócrates: Você diz que sua sabedoria consiste em saber que não sabe.

Herrod: E o que sobre desta afirmação?

Sócrates: Vejamos. Você não sabe se o feto é ou não uma pessoa, correto?

Herrod: Correto.

Sócrates: E seu trabalho aqui é matar fetos, não é?

Herrod: Sócrates, me surpreende continuamente o palavreado que escolhe para utilizar. O que faço é abortar gravidezes indesejadas.

Sócrates: Matando os fetos ou através de algum outro método?

Herrod: (Suspiro) Matando fetos.

Sócrates: Sem saber se são ou não pessoas?

Herrod: Oh. Bem...

Sócrates: Há alguns momentos você disse que não sabia em que momento o feto se converte em uma pessoa. Agora você sabe?

Herrod: Não.

Sócrates: Então você mata fetos sem saber se são ou não pessoas?

Herrod: Se você diz dessa maneira.

Sócrates: E o que diria de um caçador que disparasse repentinamente sobre os arbustos sem saber se se trata de um cervo ou de outro caçador? Você lhe chamaria sábio ou tolo?

Herrod: Está dizendo que sou um assassino?

Sócrates: Estou somente formulando uma pergunta de cada vez. Quer que repita a pergunta?

Herrod: Não.

Sócrates: Então, pode respondê-la?

Herrod: (suspiro) Tudo bem. Um caçador que se comporta assim é um tolo, Sócrates.

Sócrates: E por que ele é tolo?

Herrod: Você nunca se satisfaz?

Sócrates: Não. Por acaso não é tolo porque assegura saber o que na realidade não sabe, quer dizer, que é somente um cervo e não um companheiro caçador que se encontra entre os arbustos?

Herrod: Eu suponho que sim.

Sócrates: Ou suponha que uma empresa está a ponto de detetizar um edifício com um produto altamente tóxico, para acabar com uma praga de insetos e você seja responsável por evacuar previamente todo o prédio. Se não estivesse seguro de haver pessoas ou não no edifício, daria a ordem para aplicar o produto? Seria este ato sábio ou tolo?

Herrod: Tolo, claro.

Sócrates: Por quê? Não é porque você estaria agindo como se soubesse algo que você realmente não sabia, ou seja, que não havia pessoas no prédio?

Herrod: Sim.

Sócrates: E agora você, Doutor. Você mata fetos, e não importa os meios, quer seja por arma de fogo ou por veneno. E diz que não sabe se são humanos. Isto não é atuar como se soubesse o que admite não saber? E isto não é tolice, até mesmo mais do que tolice, em lugar de sabedoria?

Herrod: Suponho que quer que responda: “Sim, Sócrates. Tudo que você diga, Sócrates”.

Sócrates: Não pode defender-se do argumento?

Herrod: Não.

Sócrates: Certamente o argumento o devorou como um tubarão, da mesma maneira que você devora fetos.

Herrod: Suponho que pensa que o caso está encerrado.

Sócrates: Não se tiver alguma outra linha de defesa para examinarmos. Você mencionou muitos outros aspectos que desejava discutir: os direitos da mulher e a lei, por exemplo. Você voltará amanhã para continuar examinando seu trabalho comigo? Concorda em que “a vida não examinada não merece ser vivida”?

Herrod: Certamente estarei aqui amanhã. Este é o meu local de trabalho. Mas espere, tenho uma idéia. Tenho um amigo que é filósofo. Ele está na cidade para assistir uma convenção. Talvez ele poderia ajudar-me a responder as suas perguntas. De fato, amanhã dará uma palestra justamente sobre este mesmo tema, o aborto. Poderia vir escutá-lo? Poderíamos discutir depois.

Sócrates: Ficarei muito feliz em conhecê-lo. Tal como disse em minha Apologia: mesmo depois da minha morte continuarei conversando com os filósofos. Nunca sonhei que isto incluísse os filósofos do futuro assim como os do passado. Mas certamente os deuses sempre excedem nossas expectativas.

Herrod: Eu não acredito em deuses.

Sócrates: Talvez alguma vez também possamos falar disso.

Herrod: Meu amigo é professor em um seminário teológico. Ele também não crê em deuses.

Sócrates: Conheci alguém assim há algum tempo. Era um cientista cristão e ensinava química e física.

Herrod: Eu não vejo a conexão.

Sócrates: Nem ele. Mas é certo que muitos psicólogos não crêem na alma, a psique. Mas agora temos que deixar estes temas de lado, porque você está cansado. Vou assistir esta convenção amanhã. Por hora, adeus, Doutor Herrod.

Herrod: Até logo, Doutor Sócrates.